Parece não haver dúvidas de que, sim, o chamado mundo globalizado tratou também de prover a todos, ricos e miseráveis, um formidável acesso ao mau gosto.
De um lado, o mundo da fé e das múltiplas religiões, de outro, o da razão instrumental e da brutalidade tecnificada: é o que temos…
I
Para que o ato ilusionista funcione no mundo do encantamento, o espectador (os consumidores, o cidadão da rua, nós) precisa ser previamente preparado. Seus cérebros e sentidos precisam estar suficientemente danificados e suficientemente estupidificados para que sejam incapazes de perceber que o truque é apenas um truque armado com o fim específico de ludibriá-lo e conduzi-lo. E para isso, uma larga operação de desmontagem da capacidade de discernir, aprender e criticar é executada dia a dia, preferencialmente naquelas horas nas quais nos desarmamos, nas horas dedicadas ao ócio, ao descanso, ao repouso concedido pela linha de produção global, mas, é claro, também durante as tradicionalmente encantadoras jornadas de trabalho. É preciso embotar seu cérebro, amputar sua iniciativa de ver e pensar, direcionando o que restar de energia criativa exclusivamente para a produção de mercadorias. Mais ou menos assim é como opera o maquinismo que tem levado a escolhas como as apregoadas pelo atual Imperador e, num patamar ligeiramente inferior, pelos seus mais rudimentares simulacros, tiranecos insignificantes ao sul e ao norte do equador – é esse o maquinismo que tem feito crescer a base religiosa da política. Ou não é essa a sensação que temos experimentado nesse primeiro quarto do século XXI? Que a política é cada vez mais a expressão de impulsos religiosos, alimentada por eles, canalizada como se nossas escolhas fossem antes de mais nada assuntos de fé, indiscutíveis a partir do direito absoluto de crer, apenas crer, e no qual qualquer apelo à razão ou ao debate sensato de ideias se apresenta como uma heresia.
II
Num sábado à noite, começo da noite, num dos salões de festa do condomínio de alto padrão, um grupo de bem torneadas senhoras se congrega comandado por uma oradora. Por que bem torneadas? Porque elas religiosamente se preparam, modelam músculos e glúteos, praticam diferentes modalidades de esportes e exercícios físicos como se também fosse uma religião. São em torno de 50 e são todas mulheres, não há um único ser humano do sexo masculino ou de qualquer outro – certamente não há, sobretudo desses últimos, ali não seriam tolerados. Desde fora não é possível ouvir o que diz aquela que conduz a celebração. Supondo que seja uma celebração, um culto. Parece ser um. No princípio, é impossível ter certeza. Não dura muito tempo e o caráter religioso da petit cerimônia se confirma. Aquelas 50 bem modeladas moças de classe média bem alta colam as mãos umas às outras e se tornam um só corpo em louvação ao Senhor. A cena é prodigiosa. Deveria comover a todos quantos a presenciassem. Já abundantemente agraciadas pela bondade do todo poderoso, elas certamente nada mais necessitam da graça divina. Mas lá estão elas, orando e agradecendo como se fossem os mais necessitados dos seres. É uma aprazível noite de sábado, mas elas se dedicam a agradecer as dádivas recebidas e orar, naquele protegido ambiente já provido de prosperidade, por mais. No entanto, uma dúvida. Por que, pelo menos desde fora do salão de festas, para além dos vidros grossos que as protegem da adversidade e da curiosidade alheia, aquele ato parece aos olhos do observador um disfarçado ato político? Por que para o observador o ato religioso era ou parecia ser ao mesmo tempo definitivamente político? Porque, para ele, elas não estavam ali apenas para orar, mas também e quem sabe se não, sobretudo, para demarcar um território e dizer: aqui mandamos nós, nossos interesses e nossas crenças, com a graça do Senhor.
(Curiosamente, nas favelas ou nas zonas pobres das cidades, muito distantes dali, num universo quase que paralelo, e antagônico, o mesmo tipo de culto, em quase tudo semelhante, está se repetindo.)
III
Um grupo (ou bando) de seres humanos imunes à natureza do conhecimento do qual se beneficiam no dia a dia das suas existências, imunes aos raciocínios lógicos e às comparações, à dialética da contraposição de ideias e ao entendimento, imunes a tudo que não seja exclusivamente suas próprias e inamovíveis crenças – e interesses privados. Um bando (ou agrupamento) de seres que em sua plena capacidade mental e maturidade não parece capaz de escutar nada que não seja a voz que como numa ladainha (ou uma canção de ninar) se repete dentro deles. Isso, e nada mais. Num interminável acúmulo de certezas inquebrantáveis e intransponíveis onde uma quase que monossilábica locução se reproduz e replica, oração após oração, sinais que em suas almas tem o efeito de um tranquilizante narcótico. E eles, ao menos na aparência, se tranquilizam para seguir adiante sem que sejam engolfados pelo vazio de existências espiritualmente miseráveis. Talvez porque vivam em pânico, apavorados, sem ter noção de para onde olhar, sem desejo de ultrapassar os muros do castelo de prosperidade atrás do qual enclausuram uma infelicidade agônica e uma ignorância cuidadosamente cultivada.
IV
A rudeza e a estupidez, a brutalidade e a ignorância se retroalimentam na defesa intransigente dos espaços privados e de egos distorcidos e superdimensionados. O resultado muitas vezes se vê no espaço público. Por três vezes em menos de dois meses, sem mais nem menos, em meras idas aos lugares por onde todos circulam, o susto com as marcas da violência estampada no corpo das mulheres, mulheres iguais àquelas, quaisquer mulheres, um olho roxo, seco, duro, na cara – do qual foi impossível escapar, impossível também de disfarçar. A gritante humilhação produzida por homens minúsculos e poderosos.
V
Semana passada, os jornais americanos noticiaram o suicídio de Virginia Giuffre, aos 41 anos de idade. Ela foi uma das vítimas da rede de tráfego sexual montada pelo financista multimilionário Jeffrey Epstein e por sua colaboradora a também milionária Ghislaine Maxwell. Nas suas próprias palavras, uma mulher que foi “passada como um prato de frutas” quando adolescente, para o desfrute de homens ricos e poderosos – entre eles, o príncipe Andrew da Grã-Bretanha, irmão mais novo do rei Charles. Em 2015, Virginia foi a primeira das vítimas de Epstein a abandonar o anonimato e se tornar pública. Nos seus depoimentos e posteriormente em entrevistas, ela disse que “foi recrutada para o ringue de serviços sexuais em 2000, enquanto trabalhava como atendente de vestiário em Mar-a-Lago, o resort do presidente Donald Trump em Palm Beach na Flórida”.
VI
(Nas favelas, tanto quanto nos condomínios de luxo, o que se escuta, além das preces ao Senhor, é exatamente a mesma cacofonia estupidificante de signos vazios que é consumida como se fosse música. Parece não haver dúvidas de que, sim, o chamado mundo globalizado tratou também de prover a todos um formidável acesso ao mau gosto – se é que se chega a tanto.)
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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