Lembro perfeitamente da primeira vez em que vi o Profeta. Foi quando cobria um dos dias das muitas manifestações de 2015 pró e contra o impeachment de Dilma. Cheguei cedo na praça para ir sentindo o clima. Fiquei curioso com aquela figura exótica cercada de pedintes, esfarrapados, loucos e maltratados pela vida. Juntei-me ao público.
Seu olhar era sereno e um pouco vago. Vestia uma bata de algodão cru que o cobria do pescoço aos pés descalços. A gola em V deixava à vista um crucifixo prateado pendurado em um barbante curto. Segurava com delicadeza um cabo de vassoura como se fosse um cajado. A barba longa e suja e o rosto enrugado lhe dava um ar de guru de idade indefinida.
Gelei quando me encarou. Tinha um olhar magnético que combinava com a fala firme, ritmada, de voz grave e suave. Falava meio como louco, meio como sábio.
Alguns punhados de manifestantes já se aglomeravam, misturados à fauna local de executivos estressados, advogados apressados, auxiliares deprimidos, entregadores magricelas e vagabundos dos mais variáveis naipes. Mirando ao longe um engravatado irritado ao celular, disse o Profeta:
– Nada temos. Somos nada. Invisíveis aos olhos e preocupações. Aquele irmão tem tudo. É tudo e mais um pouco. Todos o veem, ouvem e respeitam. Mas está triste. Definha em raiva por ser menor que seus desejos. Consome-se pelo medo de perder as coisas caras que tem, o prestígio que tem e a mulher que acha que tem. Tolo, não percebeu que o que acha ser tudo é menos que nada. Caminha com os próprios pés para o abismo da perdição de si mesmo. Vaidoso, só é capaz de aprender pela dor que ele mesmo provoca.
De longe, um dos muitos malandros da região olhava-nos risonho. Era pobre quase tão pobre quanto os pobres aglomerados em torno do Profeta. De andar claudicante, cheio de caras e bocas de expressões forçadas e bordões engraçados ditos com estrido. Percebendo-o, disse o Profeta:
– Aquele se acha miserável. Mas é menos miserável que o que se acha rico. Sofre também. Grita e se faz de engraçado para ser visto e se sentir especial. Tem a dor de não ser o que deseja e tenta se livrar dela com as armas dos fracos: esperteza, falsidade, submissão e cinismo. Meio pilantra e meio coitado, é mais um irmão sofrido.
Já se podia perceber dois grupos na praça. Uns de vermelho outros de amarelo. Ambos ensaiavam seus rebuliços e animosidades, anunciando um clima tenso. Lamentoso, disse o Profeta:
– Vermelho é a cor da revolução, mas os de vermelho não querem revolução. Amarelo é a cor da pátria, mas os de amarelo não querem pátria. Sabem o que não querem, mas não se entendem sobre o que querem. Vivem entre soluções conflitantes, fantasiosas ou impossíveis. Acabarão por contaminar de injustas repulsas os que não estão aqui. O ódio não constrói uma nação, só destrói. Traz pobreza, fome, medo e raiva, muita raiva.
Fiz uma péssima cobertura jornalística naquele dia. Esqueci minha missão e segui o Profeta até o fim do dia. Procurei por ele no dia seguinte. E nos outros. Nada. Todos o conheciam. Ninguém sabia de onde veio nem para onde foi. Surgiu do nada e para lá voltou. Como o sonho que antecede ao pesadelo.
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Ilustração: Mihai Cauli
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