Para onde pende a direita europeia?

I

Até o cachorro do vizinho sabe que a política é, em última instância, a representação dos interesses das classes sociais. Sim, é claro que ainda existem classes na sociedade capitalista pós-moderna, pós-pós-moderna etc, explorados e exploradores, ricos e pobres e miseráveis, mesmo após a queda do Muro e ainda que os próprios explorados estejam eventualmente convencidos pelos donos do capital e dos meios de comunicação de que podem fazer parte do paraíso do consumo e ali se sintam, no ato das compras, perfeitos magnatas investidos de poderes mágicos. Um paraíso onde todos parecem viver em igualdade de oportunidades, todos transformados numa só entidade: a grande massa de consumidores. Mas, como a realidade ela mesma continua de pé, brutal e indissolúvel, é melhor voltar ao que se dizia acima: a política é, em última instância… O que não significa que tais interesses se transfiram instantaneamente de uma instância a outra, como se fizessem parte de um grande sistema de engrenagens. São tantas as mediações e os mecanismos necessários para que o aparato político funcione que essa imaginada transferência imediata (e translúcida) seria simplesmente impossível. Obviedades, platitudes. É verdade, mas não custa retomá-las aqui e ali numa contemporaneidade tão nebulosa. Porque a verdade é que quando a porca torce o rabo, são aqueles interesses os que realmente contam.

II

Que rumos deverá tomar a direita europeia numa eventual disputa de espaço com os ultras? Uma disputa de abraça e empurra que já vem acontecendo há pelo menos uma década e meia, mas que ano após ano apenas se torna mais dramática, com novos personagens e falas. As eleições do próximo dia 9 de junho para a renovação do Parlamento Europeu a coloca novamente no primeiro plano, desta vez com o protagonismo total dos ultras. Portanto, o que esperar do Partido Popular Europeu para a próxima legislatura? Suas posturas, proposições, discursos e votos em grande medida estarão destinados a não perder espaço midiático e eleitores para os rivais. O que já está acontecendo desde agora, na disputa pelos votos. Não por acaso, o mesmo se passa do outro lado e em sentido inverso. Algumas das lideranças mais curtidas da ultradireita, como Marine Le Pen e mesmo a nova estrela da trupe, a italiana Giorgia Meloni, ensaiam uma aliança e um discurso para roubar-lhes votos. Recordando: Le Pen e Meloni pertencem, cada uma, a uma das duas grandes famílias da ultradireita europeia, Le Pen ao Identidade e Democracia e Meloni aos Conservadores e Reformistas Europeus. Mas Le Pen acaba de fazer um convite público a Meloni para que trabalhem pela unificação das duas famílias. “Estimulada pelas pesquisas que preveem uma vitória retumbante do seu partido nas eleições europeias, Marine Le Pen propôs a Giorgia Meloni unir forças no Parlamento Europeu para constituir, provavelmente, o seu segundo maior grupo parlamentar e assim garantir uma influência decisiva na política da UE. ‘É hora de nos unirmos. Não podemos perder esta oportunidade’, disse no sábado a líder do Reagrupamento Nacional” – matéria publicada pelo La Vanguardia, em 28/05. Os “ventos eleitorais favoráveis empurram rumo a unidade”. Não apenas os ventos eleitorais. Há mais e mais importantes elementos: o recrudescido nacionalismo, a defesa das fronteiras, a ojeriza aos imigrantes e o discurso da lei e da ordem, é aí onde “todos se aproximam e se juntam na mesma casinha” (ver artigo anterior). Então, novamente, para onde apontará o timão a atual e futura presidenta da Comissão Europeia, a alemã Ursula Von der Leyen? Manterá ipsis litteris a aliança das últimas duas décadas entre conservadores, liberais e socialistas? Ou vai a alemã abrir espaços para pactos com os ultras? A confluência das duas famílias ultras parece apenas uma questão de tempo. Mas no final do túnel, ou melhor dito, justamente quando nos deparamos com a escuridão ameaçadora de sua bocarra aberta o que pode estar nos esperando é uma confluência ainda maior, a junção de todos numa única e grande tribo, com a direita clássica e dita civilizada, arrastada pela violenta pulsão ultra. Não será a primeira vez na história. A resposta da italiana ao convite da francesa tem toda a delicadeza de uma dama e está destinada a agradar um amplo espectro: “(Ela, Le Pen) está fazendo um caminho interessante. Nesta legislatura, às vezes nos encontramos do mesmo lado.”

III

Von der Leyen não se fez por esperar e imediatamente entrou na disputa pela mão daquela que é hoje certamente a rainha do baile, a Giorgia.  Em sua campanha para a Eurocamara, os cartazes esparramados pelas ruas da Itália a nominam simplesmente assim, Giorgia, uma dentre tantas, uma mulher do povo – e de fato assim é, Giorgia nasceu e se criou num bairro popular de Roma chamado Garbatella, de família humilde… e admiradora de Mussolini. O cortejo que lhe faz a nobre alemã é ligeiramente diferente ao da rival francesa: não para que se juntem na unificação dos ultras, claro, mas para que trabalhem pela constituição de “uma direita ampliada”. É briga de unhas e de dentes. Por hora. E muito teatrinho, porque nisso todas elas (e eles) são muito boas. A reação da francesa à ofensiva sobre a sua cobiçada Meloni foi imediata: “A presidenta da Comissão Europeia sabe que seu tempo acabou e tenta comprar votos.  No que me diz respeito, repito, nunca votarei em Von der Leyen, que liderou uma política desastrosa para os europeus. Chegou a hora de encerrar definitivamente seu mandato tóxico”. O que já se pergunta agora não é mais se o PPE abrirá as portas para pactuar com os ultras, mas sim quais alianças estabelecerá com cada um dos dois grupos ultra, com qual tentará não aparecer nas fotografias.

IV

O jornalista Antonio Nieto lembrou, durante a semana, que no ano da virada do milênio o governo conservador austríaco sofreu um bloqueio diplomático de 223 dias imposto pela União Europeia (governada, como agora, pela mesmíssima aliança entre conservadores, socialistas e liberais) por haver feito uma coalizão na qual entrava uma formação ultra. Hoje, escreveu Nieto, os ultradireitistas “estão presentes nos governos de cinco países da UE. Além de governar a Italia e a Hungria, há partidos ultras nas coalizões de governo da Croácia, Eslováquia e Finlândia”. A pressão sobre os Populares vem, portanto, de todos os lados e por todos os lados estão cedendo terreno. A par e passo, absorvem o discurso ultra e a eles se aliam cada vez mais. Não há dúvidas de que no geral sairão vitoriosos. Mas são pesadas as concessões, sejam a nível programático, seja quanto ao discurso. Pendem definitivamente na direção do extremismo dos competidores diretos. Despencam. No encerramento do seu comentário para o El País, Nieto lembra que a formação mais votada nas últimas eleições da Holanda foi o partido da Liberdade (ultra), e “apesar das resistências, os liberais acabaram por levantar o cordão sanitário que tinham implantado há 12 anos”.  Não é a primeira nem a segunda vez na história. Visconti já o havia retratado encantadoramente em Os Deuses Malditos – e isso já tinha sido citado aqui. A história não se repete apenas como farsa. A história se repete exaustivamente sem que nunca aprendamos nada. Ou sem que nunca possamos evitar as catástrofes que já vimos no passado, sempre em benefício dos mesmos.

V

É preciso esperar para ver o resultado das urnas. O que indicam as pesquisas é que essas três damas do mal lideram com folga as pesquisas em seus respectivos países. Na França a formação ultra, com quase 33%, tem o dobro da intenção de votos que a lista dos partidários do presidente Emmanuel Macron. Na Italia, Giorgia também lidera com uma expectativa de votos de quase 30%, superior ao número de eleitores que a consagraram no final de 2022. E na Alemanha, a Democracia Cristã da atual presidenta da Comissão Europeia se situa nos mesmíssimos 30% das duas colegas – nesse caso, secundada pelo AfD, a formação ultra que foi expulsa do grupo de Le Pen no Parlamento pelas declarações de branqueamento das SS por parte do seu principal candidato Maximiliam Krah.

VI

Nessa paisagem na qual se esboçam alguns dos círculos do inferno que avançam sobre a Europa, onde se situa a esquerda?

Pode opor alguma resistência? Quem? Onde? Como? Com que programa?

Há vozes, sim, aqui e ali, que tentam juntar forças, renovar os apelos aos seus e, sobretudo, aos que já foram seus, e mais que opor resistência, encontrar as vias de acesso para conquistar corações e mentes de uma sociedade que definitivamente parece devorada pelas forças do ódio, do rancor e do medo e incapaz de enxergar os interesses de classe que a manipulam.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli
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