O filósofo e sociólogo Edgar Morin.

A solidariedade é um tema que aquece corações e desafia mentes. Edgar Morin(1), desde os tempos da Guerra Civil Espanhola, se debruçou sobre tal desafio e sua relação intrínseca com a economia e a política. Hoje vamos pensar, em voo de pássaro, a reconstrução do Brasil levando em conta o papel da solidariedade.

Façamos um breve balanço da pandemia, que eu chamo de peste. Em poucos meses transformou-se numa das principais causas de morte no mundo: matou mais de 3 milhões de pessoas em um ano e meio.

Desde o seu aparecimento, a peste matou 3 milhões de pessoas para 140 milhões de casos registrados, de acordo com levantamento da Universidade Johns Hopkins, de 18 de abril de 2021. Os Estados Unidos são o país mais enlutado com mais de 1/2 milhão de mortos (para 31 milhões de casos). Seguem-se o Brasil com cerca de 400 mil mortos (para 13 milhões de casos) e o México, com 200 mil mortos (para 2 milhões de casos). A Índia está em quarto lugar, com 180 mil mortos (para 14 milhões de casos).

Uma radiografia social

As pestes são um fenômeno tanto de saúde quanto social. Elas mostram as vulnerabilidades estruturais da sociedade e desafiam o status quo. A pandemia de influenza de 1918 trouxe com suas tragédias grandes mudanças políticas e sociais no mundo: passou-se a ter uma nova visão, positiva, do movimento trabalhista e dos sindicatos, e criaram-se sistemas universais de saúde no correr das décadas seguintes. É verdade que essas mudanças se realizaram de forma diferente de um país para outro.

Da mesma forma, a pandemia da Covid-19 evidenciou as desigualdades existentes em nossa sociedade, que afeta principalmente as pessoas marginalizadas, tornadas invisíveis ou desumanizadas, como idosos e deficientes físicos. Assim como, também, os milhares de encarcerados em prisões.

Mas evidenciou também a situação daqueles que vivem em áreas onde há superlotação e falta de acesso aos recursos, como nas comunidades indígenas. Seus efeitos são modulados por local de residência, origem étnica, gênero, classe social. Corremos mais risco de sermos infectados com Covid-19 nos bairros onde as comunidades negras residem do que em outras regiões. As mulheres tiveram que absorver a parcela mais importante das chamadas tarefas domésticas, e as crianças de famílias pobres passaram a ter mais dificuldade em recuperar o atraso escolar acumulado. Sem falar nos impactos em escala global, em que a corrida por equipamentos e por vacinas amplia a lacuna do apartheid global.

Os múltiplos exemplos de solidariedade que surgiram durante a pandemia revelaram as deficiências desta solidariedade na situação dita “normal”, deficiências causadas pelo próprio desenvolvimento da nossa civilização, que reduz enormemente a solidariedade sob o efeito do individualismo cada vez mais egoísta, juntamente com o efeito de uma compartimentação social cada vez mais fracionada. Na verdade, a solidariedade estava adormecida em cada um e despertou com o infortúnio vivido em comum. Para suprir a carência de poderes públicos, assistimos ao surgimento de um grande número de atos e iniciativas de solidariedade: produção alternativa à falta de máscaras por empresas reconvertidas, roupas artesanais ou domésticas, agrupamentos de produtores locais, entregas ao domicílio gratuitas, ajuda mútua entre vizinhos, alimentação distribuída a moradores de rua, acompanhamento de crianças e contatos mantidos nas piores condições entre professores e alunos”. (Morin, Edgar)

Outras medidas importantes foram adotadas por diferentes governos no contexto da peste: benefício de emergência, proibição de despejo de moradias, liberação de presos, planos de regularização de pessoas sem status, abertura de quartos de hotel para acomodação de pessoas na falta de moradia, colaboração internacional em pesquisa científica, planos de ação sobre mudanças climáticas, que estão intrinsecamente ligados às pandemias. Essas intervenções são reformas de pequena escala que estabelecem as bases para novas políticas necessárias.

Assim, essa pandemia, como a de 1918, nos força a ver nossas fraquezas em meio à dor e às lágrimas. E nos coloca frente a frente com as falhas dos sistemas que construímos. Também nos mostra como corrigi-los. A decisão de fazer isso depende de nós.

Solidariedade e novas possibilidades

A pandemia apresenta possibilidades para perceber a fragilidade do mundo. Questiona as interações entre meio ambiente e saúde e o papel da biodiversidade em sua propagação. Refletindo uma visão solidária da saúde pública, pode ser o prenúncio de uma democracia da saúde se a política de saúde se tornar um assunto coletivo e não for mais reservado estritamente a políticos e profissionais de saúde. Esta crise nos exorta a ir além do caráter rotineiro da existência para nos aproximar de uma segunda via. É, este é o desafio, devemos buscar uma maneira diferente de viver. E a solidariedade se mostra como caminho, já que durante a pandemia nos tornamos conscientes de nossa dependência e vulnerabilidade. Assim, pandemia versus solidariedade nos confronta com a questão do significado da vida.

A crise também estimulou uma série de iniciativas, que buscaram diferentes remédios para os males que a pandemia causou ou agravou. Textos de intelectuais, cientistas, médicos, depoimentos, sugestões, apelos de artistas solidários e também reflexões e propostas de cidadãos para diagnosticar, prever e expor as bases de uma nova política que visa reformar e até transformar a sociedade.” (Idem)

É, de novo afirmo: pandemia versus solidariedade nos confronta com a questão do significado – o confinamento é fonte de angústia. O desaparecimento de reuniões, refeições compartilhadas, ritos de amizade fecham as cidades em uma economia doméstica incerta. Porque toda vida foi e está exposta.

Na medida em que a saúde de cada um depende da saúde de todos, só um serviço público de saúde, equipado com material e pessoal necessários ao seu bom funcionamento, pode permitir-nos evitar outras pestes. Para Morin, “esta crise deve abrir as nossas mentes, há muito confinadas ao imediato”. Porque por trás disso estava a corrida pela rentabilidade, a digitalização da sociedade, a economia just-in-time, a transferência dos serviços públicos para os mercados. Estas fragilidades da sociedade que construímos exigem uma reflexão estratégica sobre nosso futuro comum.

A crise em uma sociedade desencadeia dois processos contraditórios. O primeiro estimula a imaginação e a criatividade na busca de novas soluções. A segunda pode ser traduzida em uma tentativa de retornar a uma estabilidade anterior ou de se inscrever para uma salvação providencial. A angústia provocada pela crise motivou a busca e denúncia de um culpado. Esse culpado pode ter cometido erros que causaram a crise, mas também pode ser um culpado imaginário, um bode expiatório que deve ser eliminado” (Idem).

Estou convencido de que existem possibilidades positivas além desta pandemia, se ela nos permitir tomar consciência de nossas fraquezas e voltarmos a nos concentrar no essencial. No entanto, essa compreensão não pode atender apenas à parte mais precária da população, aquela que paga o preço mais alto pela pandemia. As medidas de contenção amplificam as desigualdades. O fechamento da economia aumenta a precariedade e a transforma em pobreza. É essencial, a curto prazo, organizar a ajuda às famílias e empresas em dificuldade para lidar com o vírus. Mas é fundamental, a médio prazo, mobilizar as lições da crise para lançar as bases de economia e políticas solidárias. Devemos propor o retorno ao estado de bem-estar social.

A indústria deve ser reconvertida para poder produzir equipamentos médicos e medicamentos, mas também equipamento de triagem, reposição de estoques e produção de máscaras. E, logicamente, devemos manter as medidas de barreiras sanitárias. Mas, para além da emergência sanitária, a injeção de liquidez na economia real, já iniciada em alguns países, tanto a nível nacional como comunitário, deve estar presente na economia solidária, evitando que este capital acabe em mercados especulativos. E atenção, deve ser terminantemente proibida a especulação sobre os títulos da dívida pública.

Uma política solidária de emprego ativa é absolutamente necessária para fazer face ao desemprego que se fez presente. Provavelmente, estará ligada ao setor de serviços, de suporte, de atendimento e de utilidade social, mas também à produção e comercialização de alimentos.

Finalmente, a política social solidária deverá ser renovada através da reavaliação dos mínimos sociais, um aumento geral dos salários e das pensões mais baixas. Nesta mudança de paradigma, as autoridades e seus parceiros sociais têm um lugar especial a ocupar. Primeiro porque a crise mostrou que é a nível local que ocorre a mudança. E segundo porque não é possível enfrentar tal crise seguindo uma política de especialistas, que se sentem muito seguros de suas habilidades para ouvir aqueles que estão vivendo na carne a pandemia que se abateu sobre o planeta.

A pandemia está abrindo perspectivas e possibilidades solidárias. E se você entender isso, assim como os governos que você eleger, um Brasil solidário será possível. Pense como e em que medida você será necessário nesta nova etapa que se abre.

Referências:
(1) Morin, Edgar, Necesitamos funerales para despedirnos, y otras lecciones de la pandemia, El País online, em 05.11.2020. Edgar Morin, Paris, 1921, é filósofo e sociólogo, autor de “Por uma política da civilização” ou “Uma breve história da barbárie no Ocidente”. Neste artigo, utilizamos trechos de “Vamos mudar a faixa. Lições da pandemia”, Paidós, 2020. No próximo dia 8 de julho Edgar Morin completa 100 anos de idade.

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NR: O Terapia Política publicou recentemente artigos relacionados, eis alguns deles: Transformar fraqueza em força, de Adhemar Mineiro; O fracasso dos governantes, de Eduardo Scaletsky; Noam Chomsky no Forum Social Mundial.